Ensaio sobre as mudanças e as novidades que a tecnologia e a internet trouxeram para os hábitos de leitura, assim como as possibilidades surgidas para escritores.
"Não estou dizendo que você vai ter que deixar de ler livros e aprender a usar um aparelho eletrônico. Você continuará lendo livros se quiser, mas vai entender que esse aparelho eletrônico que passa mais tempo na sua mão do que um livro também pode ser usado para leitura, e ficará surpreso ao perceber que, aliás, é através dele que você já lê o dia todo — quem sabe é nele que você está lendo este texto."
O ensaio faz parte do livro "A Desobediência do Escritor".
Depois de pesquisar bastante e de conversar com várias pessoas da área, decidi publicar meu livro na íntegra na internet.
Desde o final de 2015 eu já estava com 95% do livro pronto e planejava lançá-lo em dois formatos, primeiro em e-book e depois em uma pequena tiragem impressa de 300 cópias. Desde muito antes e ainda hoje tenho explorado a web como espaço não apenas para divulgar meus trabalhos mas como plataforma de publicação e veiculação de projetos, sejam eles textos, desenhos, vídeos, etc.
Pode não ser o mesmo para a maioria das pessoas, mas eu passo mais tempo lendo na internet do que no papel. Carrego no meu tablet ou celular todos os sites, blogs, portais, jornais e livros que quero ler e levo para onde for. A praticidade de centralizar todas as leituras em uma só ferramenta, de poder salvar os textos, comentar, compartilhar com os amigos, otimizou meu hábito como leitor e me fez ler muito mais. Portanto, optar em lançar este livro completo na web foi mais do que um movimento natural.
Comecei a levar literatura a sério por volta dos 14 anos, instigado pelos livros que tinha lido até então e pela recente chegada da internet que facilitava a pesquisa por livros e autores. O ano era 1998, eu morava no interior da Bahia e poucos amigos gostavam de livros, mas pela internet descobri fóruns e grupos virtuais onde leitores e escritores se reuniam para discutir o que estavam lendo e trocar informações.
Muito antes de inventarem os blogs e as redes sociais começarem a existir, eu acompanhava discussões e dicas de livros através desses grupos, que preenchia minha sedenta curiosidade e servia como um enorme incentivo para a formação do meu gosto literário e para que eu começasse a me arriscar a escrever. Portanto, aprendi a ler e a escrever instigado pelas particularidades do mundo virtual que desde o início já possibilitava comentários, compartilhamentos e uma relação próxima entre autor e público.
Passei a adolescência carregando livros para todos os lugares. Muitas vezes era visto com mais de um, alterando um título mais denso com um mais leve, uma ficção com uma não ficção, lendo em praias, restaurantes, lanchonetes, bares. Acompanhado pelos livros eu não reconhecia a solidão, embora passasse muito tempo sozinho.
Lembro-me dos livros que me marcaram e do momento em que os li. Sei quais foram importantes para a minha formação intelectual e emocional, quais me ajudaram a questionar e refletir o mundo, a entender as pessoas e a me entender.
Ler é uma das minhas atividades favoritas. Além de ser muito divertida, a leitura me ajuda a entender a existência. Não estou sozinho nessa, quem já experimentou o prazer de ler um bom texto reconhece a sensação. Os antigos gregos colocaram na entrada de uma livraria em Tebas a inscrição “espaço de cura da alma.” Assim como afirma Nuccio Ordine, autor do manifesto A Utilidade do Inútil, “alimentar o espírito é tão importante quanto alimentar o corpo.” Logo depois da Primeira Guerra Mundial, Freud começou a usar a literatura durante suas sessões de psicanálise, prescrevendo livros para soldados que voltavam traumatizados da guerra. O ensaísta Tzvetan Todorov, autor do A literatura em perigo, explica que a literatura lhe ajuda a viver:
“Ao invés de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com estas experiências e me permite melhor compreendê-las. (…) a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda à sua vocação de ser humano”.
Pois bem, entre muitas qualidades, a que eu gosto mais é que quando lemos entramos em uma espécie de conexão mental com o escritor, como se nós dois pensássemos com um único cérebro, pois o livro só existe enquanto o leitor o lê, ou seja, as palavras escritas pelo autor só ganham forma na cabeça do leitor. Acredito que ler Doistoiévski é como conversar com ele. É como ter Shakespeare, Proust, Saramago como amigos. Imagina só, você pode preparar um jantar e ter o Jean Paul Sartre ou a Simone de Beauvoir para conversar. Ler ilumina o nosso mundo interior, aumenta a nossa capacidade de raciocínio e observação, nos salvando da miséria de ideias, nos ajuda a formar nossas próprias opiniões e nos ensina a pensar.
Leio todos os dias, por prazer e necessidade. A leitura faz parte da minha vida assim como comer e dormir.
Além dos autores clássicos posso dizer que alguns escritores que conheci nos grupos e sites virtuais também me influenciaram e serviram como inspiração e referência para meus interesses. O ponto onde quero chegar é que tendo começado a conhecer a literatura no início do século XXI, nada disso seria tão intenso para mim sem a internet.
Há poucos anos atrás era comum ler entrevistas com jovens escritores, que começaram a escrever em blogs e depois lançaram livros por editoras, responderem questões sobre como foi passar das telas para o papel.
Os velhos editores de jornal tentavam questionar as diferenças entre o que se escrevia na internet e o que era publicado nos livros. Pensando nisso hoje não tem como não rir do susto que a internet deu (e ainda dá) nas cabeças mais conservadoras. É óbvio que cada plataforma tem a sua especificidade, assim como TV é diferente de cinema, jornal de rádio, livro de blog, mas isso não impede que se possa produzir literatura em qualquer meio. Escrever é escrever. A plataforma não te tornas um escritor menor. Shakespeare escrevia para teatro, Kafka escrevia diários e Bob Dylan escreveu suas narrativas no formato de letras de música.
Mas sim, publicar livros impressos e publicar livros na web são processos diferentes.
Para publicar um livro é necessário enviar um original para uma editora e aguardar ser lido (eles costumam levar no mínimo 4 meses para responder). Se o original for aprovado e não precisar ser reescrito, aí então espera-se meses até que a editora revise e finalize o documento. Depois mais meses até que envie para a gráfica, imprima centenas de exemplares e distribua nas livrarias. Com a atual situação do mercado editorial é possível que o livro leve um ano para ser publicado.
Para publicar um livro na internet… É só fazer o upload do livro nas lojas virtuais ou publicá-lo direto num site. Existem dezenas de serviços online que fazem isso gratuitamente em poucos minutos.
O segundo caminho é muito mais simples, não é? Mas no momento não são muitos escritores que optam por este lançamento.
As indústrias da música e do cinema passaram por uma gigante reforma de negócios que modificou a lógica de distribuição e comercialização de seus produtos, afetando inclusive em seus formatos e conteúdos. Spotify e Netflix se estabeleceram como ótimas formas de acesso à música e ao cinema. A ascensão das séries de TV é consequência da mudança do gosto do público que tem preferido narrativas longas porém divididas em partes menores.
Enquanto isso o mercado literário mostra-se ainda conservador em relação às mudanças proporcionadas pela tecnologia e medroso em investir na renovação de seu modelo de negócios. Jornais impressos estão pouco a pouco se extinguindo, editoras estão fechando, é uma questão de tempo até perceberem que se quiserem permanecer precisarão reformular seus investimentos. No momento as editoras reagem como as gravadoras e as produtoras de cinema reagiram no passado, respondendo a “promessa” do digital (ou “ameaça”, que é como eles veem) simplesmente ignorando ou negando a mudança, só que com menos força, claro, afinal quem está preocupado com a literatura?
Quem está preocupado com as editoras além das pessoas que trabalham nelas? Nós, leitores e escritores? Sinceramente, eu estou mais preocupado em ler e escrever, e para isso não é mais necessário editoras.
Não estou dizendo que você vai ter que deixar de ler livros e aprender a usar um aparelho eletrônico. Você continuará lendo livros se quiser, mas vai entender que esse aparelho eletrônico que passa mais tempo na sua mão do que um livro também pode ser usado para leitura, e ficará surpreso ao perceber que, aliás, é através dele que você já lê o dia todo — quem sabe é nele que você está lendo este texto.
É claro que livros impressos continuarão sendo lidos, existem neles atributos impossíveis de serem reproduzidos no modelo digital, entretanto, eu não gosto do antagonismo que se criou entre o livro impresso e o livro digital. Como leitor eu não me importo com isso. Essa é uma rivalidade entre empresários que pretendem julgar para nós leitores qual a melhor forma de termos acesso aos livros, sendo que a melhor resposta é: todas.
Os livros impressos não serão esquecidos e a leitura digital não precisa ser aceita por todos. O importante de verdade é que a leitura chegue, não importa a forma, não importa se é por uma grande editora, se é por uma edição antiga, uma editora independente, edição do autor, se é e-book, se é site, se foi impresso em casa… a literatura não é isso, a literatura é o texto.
Se essa é uma revolução literária, prefiro deixar a questão para os acadêmicos que estão preocupados com a definição do que é válido em literatura. Como leitor, digo que existem possibilidades na internet que ainda precisamos desbravar.
O livro é um suporte onde se apresenta uma ideia, ou várias, organizadas para começarem na primeira página e terminarem na última, e que se pretende ser um objeto único e completo (mesmo os que têm continuações).
Ora, o livro comporta um conteúdo sólido e fechado. Temos em mãos um objeto pensado para ser inteiro, tudo o que foi impresso e encadernado em um título foi pensado para funcionar como um corpo único.
Esta experiência de leitura contrasta com a da leitura feita na internet.
A internet oferece uma correnteza de informações jamais vista. Blogs, jornais, revistas, mídias independentes, redes sociais, e-mails, a produção de conteúdo do mundo inteiro acontecendo em tempo real vindo de todas as direções e sem fim.
Na internet não há limites nem barreiras. Por exemplo, já li vários textos da Eliane Brum mas nunca li nenhum de seus livros, e nem por isso penso que desconheço o seu trabalho como escritora. Sua obra na internet continua em expansão e não necessariamente abarca o mesmo assunto. É uma obra em progresso. Além disso, um texto da Eliane Brum pode levar a outro texto, a outro site, a um vídeo, uma música, um comentário, e assim por diante, a leitura não acaba.
Não é possível imprimir a internet nem dizer que chegou ao fim da sua leitura.
Até mesmo um único site não pode ser visto como uma coleção fechada de conteúdo. Nós não pensamos no sentido de começar a ler um site e terminá-lo. Ninguém diz “acabei de ler o seu site” como dizemos “acabei de ler o seu livro.”
O livro é fechado. A internet é aberta.
Então podemos entender que o livro é a plataforma perfeita para expor uma ideia em sua forma completa e que a internet é a plataforma perfeita para compartilhar uma ideia imediatamente e multiplicar o seu alcance.
Se a internet é o lugar mais eficiente para distribuir informação e criar conexões entre essa informação e os leitores, e o livro é a melhor forma para expressar conhecimento, por que não juntar essas duas forças? A resposta seria postar um livro num site ou publicar um site como livro? Penso que não basta inverter o produto, é muito mais do que isso.
Publicar um livro na web me possibilita criar uma obra em expansão, onde não apenas posso acrescentar novos textos como também posso atualizá-los se eu achar necessário. Assim também disponho das particularidades da leitura social em rede, onde os leitores podem comentar em cada texto, compartilhar o que gostou, salvar em seus computadores…
O hábito de leitura está fragmentado em várias ferramentas, já não distingo mais se a leitura está em livros, jornais, e-books ou na web. Vivo em busca de histórias e pensamentos, seja onde eles estiverem. Meu argumento é que as narrativas podem ser encontradas em qualquer lugar e a internet é ainda um universo pouco explorado em suas capacidades, ou pouco aceito, visto com desconfiança. A grande parte dos escritores escreve com a finalidade de publicar um livro, assim como as editoras e o mercado literário — e a maioria dos leitores — só acham que é escritor àquele que tem um livro publicado. Certo? Claro, mas hoje o mais importante para mim como leitor é ter acesso ao que quero ler, não importa o meio.
O importante é se o texto alcança. E se alcançar, se ele provoca. E se provocar, se ele nutre. Não importa onde ele esteja, se ele consegue alimentar o espírito (“tão importante quanto alimentar o corpo”), nos salvando da miséria de ideias, não importa de onde venha, que ele nos ensine a pensar e que permita que cada um “responda à sua vocação de ser humano”.
E como escritor eu penso que se você leu esse texto, se leu até o fim, ou seja, se chegou até aqui, é disso que estou falando. Me dou por satisfeito.